Em países onde vigora o Estado Democrático de Direito, algo como uma “intervenção militar” em que acontece o uso do poder das Forças Armadas
(Exército, Marinha e Aeronáutica) só pode ocorrer sob ordem dos poderes
constituídos, isto é, dos conselhos formados por membros do Poder Executivo e do Poder Legislativo e com a devida supervisão do Poder Judiciário. No Brasil, as intervenções militares, segundo a Constituição Brasileira de 1988, só podem efetivar-se legalmente em três casos específicos: 1) Intervenção federal; 2) Estado de Defesa; 3) Estado de Sítio.
Estabilidade institucional, ordem pública e paz social
Os três casos que citamos acima estão definidos na parte da Constituição de 1988 que trata “Da defesa do Estado e Das Instituições Democráticas, Do Estado de Defesa e do Estado de Sítio”. Essa parte consta no Título V, Capítulo I, Seções I e II
do referido documento, que busca delinear as medidas para garantir a
estabilidade institucional, mantenedora da ordem pública e da paz social
no país. Na Seção I, temos o artigo 136 que define o Estado de Defesa:
Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.
Os conselhos destacados acima são formados
pelos presidentes da Câmara e do Senado Federal, pelos líderes da
maioria e da minoria da Câmara e do Senado Federal, pelo vice-presidente
da República e pelo Ministro da Justiça. É a partir da concordância
entre os membros desses conselhos que pode ocorrer intervenção militar
circunstancial em algum município ou estado da federação. Esse tipo de
intervenção é corretamente denominado de intervenção federal.
Para casos mais graves, a Constituição no
capítulo I do Título V, na Seção II, trata do Estado de Sítio, cujas
circunstâncias para seu decreto são definidas no artigo 137:
Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de:
I - comoção grave
de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a
ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa;
II - declaração de estado de guerra ou resposta à agressão armada estrangeira.
Como se vê, o Estado de Sítio configura o
recurso mais extremo que um regime democrático pode tomar, mas ainda sim
permanece dentro dos dispositivos constitucionais previstos. A
Constituição Federal de 1988, ainda dentro do Título V, em seu capítulo
II, ressalta, após a definição dos Estados de Defesa e de Sítio, o que
são e qual é o papel das Forças Armadas para que não fiquem sombras de
dúvidas sobre o lugar delas no ambiente democrático:
Art. 142. As
Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela
Aeronáutica, são instituições nacionais permanente e regulares,
organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade
suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à
garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer
destes, da lei e da ordem.
O caso de 1964: intervenção, revolução ou golpe?
Houve, nas últimas décadas do século XX, e
ainda há muita discussão nas arenas política, jornalística e
historiográfica a respeito de como qualificar os fatos transcorridos
entre 31 de março e 9 de abril de 1964. O que ocorreu nesses dias foi
uma intervenção militar constitucional?
Seguramente, não. Duas frentes militares mobilizaram-se na madrugada de
31 de março: uma, no Rio de Janeiro, liderada pelo general Costa e Silva; e outra, em Juiz de Fora, Minas Gerais, liderada pelo general Olímpio Mourão Filho.
Nenhuma dessas movimentações amparava-se
na Constituição de 1946, então vigente na época. Elas resultaram das
convicções políticas e da percepção pessoal das circunstâncias pelas
quais o Brasil passava naquela época. Não houve pedido formal por parte
do Congresso Nacional, em 31 de março, para que os militares
interviessem contra o presidente João Goulart – ainda que pudesse haver
suspeitas de orquestração de um golpe de esquerda no Brasil.
O Congresso Nacional só se manifestou
sobre as circunstâncias em 2 de abril, quando não se sabia se João
Goulart estava no país ou se já havia optado pelo exílio, dadas as
movimentações dos generais. Em 2 de abril, a cadeira da presidência da
República foi declarada vaga pelos parlamentares, e Ranieri Mazzilli, presidente do Congresso, assumiu interinamente o posto de chefe de Estado.
O fato é que o Brasil vivia um impasse: o
Congresso tinha a legitimidade constitucional para reorganizar a
política no país, dada a vacuidade da cadeira do presidente. No entanto,
o poder real não estava no Congresso, estava no chamado Comando Supremo Revolucionário,
no Rio de Janeiro, liderado pelo General Costa e Silva, pelo Brigadeiro
Francisco de Mello e pelo Almirante Augusto Rademaker. Foi esse Comando
Supremo Revolucionário que passou a ditar as regras políticas,
sobretudo a partir do Ato Institucional de 9 de abril de 1964, que ficou conhecido como AI-1.
Esse ato institucional, que teve participação do pensador autoritário Francisco Campos – o mesmo que redigiu a Constituição de 1937, que instituiu a ditadura do Estado Novo –
vinha acompanhado de um preâmbulo que defendia o caráter revolucionário
da ação dos militares naquela circunstância. Para tanto, apresentava o
argumento de que havia legitimidade política naquelas ações, mesmo que
não houve a aprovação direta do Congresso.
Além disso, o AI-I modificou os preceitos
da própria Constituição de 1946 e impôs diretrizes a serem seguidas pelo
Congresso. Era uma espécie de controle extraconstitucional da própria
Constituição, como pode ser visto no trecho abaixo:
Para demonstrar que
não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a
Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte
relativa aos poderes do Presidente da República, a fim de que este possa
cumprir a missão de restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e
tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja
purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo, como nas
suas dependências administrativas. Para reduzir ainda mais os plenos
poderes de que se acha investida a revolução vitoriosa, resolvemos,
igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas aos
seus poderes, constantes do presente Ato Institucional.
Portanto, reforçamos:
o que houve, em março e abril de 1964, não foi uma intervenção militar
constitucionalmente prevista, mas uma ação motivada por convicções
políticas dos próprios militares. Se tais convicções compuseram uma revolução ou um golpe de Estado,
é questão para debates que ainda vão atravessar décadas. Mas o fato é
que as ações dos militares subverteram e subordinaram a Constituição e
as instituições, como o Congresso Nacional, a um Comando Supremo
Revolucionário por meio de um documento: o Ato Institucional de 9 de
abril.
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